Da Reserva de Creonte

ou

Das Leias Iníquas em Matéria de

Compensação Tributária

 

 

 

Francisco José Soares Feitosa

 

 

 

Tenho que o ideal de justiça passa, obrigatório, pela simetria. A metade do rosto há de ser igual à outra metade. Diz-se até que essa igualdade seria um dos fundamentos da beleza. Os traços, ainda que pesados, se simétricos, belos. Dá até para desconfiar que o direito primitivo tem sido tão bem aceito por conta de sua simetria, onde um dente, um dente; uma perna, uma perna. O meu olho cego, cegar-te-ei o teu. O problema é que, tamanho o "estoque" de aleijados e de caolhos, não teríamos lugar para tantos… Sim, as idéias de Beccaria… e, finalmente a modernidade, com a sobrepujança do propósito de reabilitar o faltoso. E por que não confessar? A cultura da misericórdia. Estaríamos menos “corajosos”? Talvez. Mas assim é melhor. 

Vez por outra deparamo-nos com uma lei da "reserva de Creonte". Trago-lhe, meu caro leitor, esta expressão: Reserva de Creonte em oposto à Reserva de Antígona; leis cruéis versus lei justa, respectivamente, onde o “justa” é sinônimo de simetria. Contudo, a simetria sozinha não é suficiente. É fundamental que a lei, ainda que simétrica, seja em prol. Em prol de quem? Do homem, é claro. Do teu (do nosso) crescimento. A ascese, vide Platão.

Vejamos esta lei, a propósito a da compensação tributária:

Art . 27. A importância a recolher será:
(...)

§ 4º Em qualquer hipótese, o direito ao crédito do imposto será condicionado às exigências de escrituração estabelecidas nesta lei e em seu regulamento, e, quando não exercido na época própria, só poderá sê-lo, cumprida a formalidade do inciso I do art. 76 ou quando o seu valor for incluído em reconstituição de escrita, efetuada pela fiscalização.  (Lei 4.502, de30.11.1964)

 

Naquele tempo, 1964, anteriormente ao Código Tributário Nacional, a legislação do IPI já determinava, estabelecendo assim uma simetria de direitos, Fisco e contribuinte, que a fiscalização haveria de fazer a cobrança do tributo, levando porém em consideração os créditos do contribuinte, ainda que este não os tivesse escriturado. Lamentável, aquela Reserva de Antígona, daquele tempo, 1964, durou pouco. Não foram os generais no seu ímpeto cruel. Foram os fiscais, que à época participavam da arrecadação das multas que, prejudicados em multas menores, pleitearam e conseguiram a sua revogação. Realmente, ao interesse da categoria, não fazia sentido perder tempo reconstituindo escritas, ainda que o contribuinte lhes aprontasse os dados à simples conferência, porque, afinal, melhor cobrar o débito total, sem crédito algum, com as multas pelos máximos. Trata-se do Decreto-lei nº 34, de 18.11.1966, que em seu art. 2º deu nova redação art. 27 eliminando a simetria de cobrar tão-só o devido.

Muito interessante, do ponto de vista histórico, para quem quiser pesquisar o sistema legislativo brasileiro, como as coisas são diferentes quando nascem do projeto de lei, ainda que de iniciativa do Executivo, via Congresso Nacional, e quando surgem do ar, tipo decretos-leis de então e atuais medidas provisórias de agora. Em matéria tributária, sempre foi assim: as leis oriundas de projetos, porque de outra origem que não os corredores do Fisco, resultam em algo mais “jurídico”. Já nos decretos-leis e medidas provisórias, diretamente das forjas de Creonte (Fisco), o compromisso com o “justo” é nenhum. Foi assim com a lei primitiva do IPI, oriunda de um grupo de estudos alheio à Receita Federal da época, a Diretoria de Rendas Internas. De fato, surgiu na Lei 4.502 o dispositivo “justo” em prol da simetria, para, logo a seguir, o Creonte do dia impor-lhe, via decreto-lei, a revogação. O pior não foi a revogação pura e simples. Foi a criação de uma cultura, uma mentalidade: Ao Fisco, tudo!

Esqueceu o Creonte de então que, no mesmo mês de novembro de 1966, tramitava no Congresso Nacional a Lei 5.172, posteriormente elevada à categoria de Código Tributário Nacional, resultante de um projeto amplamente discutido, de autoria maior de Rubens Gomes de Sousa, um humanista de peso. Veio no CTN este dispositivo anti-Creonte:

Art. 142. Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível.

Parágrafo único. A atividade administrativa de lançamento é vinculada e obrigatória, sob pena de responsabilidade funcional.

 

 

Merece destacar: «calcular o montante devido». Evidente que, nos tributos aritméticos, ditos também escriturais, de débito e crédito (IPI, ICMS, IR-Fonte, PIS, Cofins e alguns outros com típicas antecipações), somente é possível «calcular o montante devido» após considerar, de um lado, os débitos; do outro, os créditos. Do contrário, ter-se-á apenas a configuração do princípio do "venha a nós o Vosso reino". Ora, o lançamento realizado pela autoridade lançadora (o auditor fiscal) pressupõe liquidez e certeza, o valor justo (exato) para inscrição e cobrança:

Art. 204. A dívida regularmente inscrita goza da presunção de certeza e liquidez e tem o efeito de prova pré-constituída. (CTN)

 

Evidente que se a autoridade lançadora produzir um lançamento sem levar em conta os créditos do contribuinte, além de estar espoliando-o em seus direitos, terá produzido um cálculo torto, ilíquido e incerto, por isto mesmo imprestável para cobrar. Cálculo torto? Isto mesmo, será um cálculo torto, a carga torta, aquela que só pesa de um lado. Como corrigir — agora uma questão de Linguística — a carga torta? Resposta: compensando-a!, isto, é, redistribuindo o peso para ambos os lados. O equilíbrio.

Naquele tempo, da participação dos funcionários sobre as multas fiscais, como se fossem sócios do Tesouro (sistema abolido pela Emenda Constitucional nº 1, de 1969), o resultado era ótimo para os fiscais: quanto maior o tributo, maior a multa e mais gorda a participação. O pior é que, mesmo com a perda dos “benefícios” garantidos pela lei assimétrica, ficou o viés. O que se vê, na prática do dia a dia, são lançamentos municiadas apenas da máquina de somar. Créditos? O contribuinte que corra no prejuízo, atrás deles!

Tenho que não há necessidade de lei alguma, ante os princípios fundamentais da CF (art. 3º, inc. I, “uma sociedade justa”), para legitimar o direito a todos os contribuinte de serem cobrados na conta justa, isto é, mediante a compensação de seus haveres. Tenho, em concreto, no meu escritório, a causa de um que requereu ressarcimento que nem precisaria requerer se vigesse o princípio da «sociedade justa». Pois bem, entre o requerimento e o comparecimento do auditor, justos cinco anos,  sete meses e dez dias. O pagamento, agora, num total de oito anos de demora por conta do fisco, deu-se sem Selic alguma. O curioso, na mesma medida, é quando o mesmo funcionário que brada contra a simetria, tem alguma diferença salarial a receber, e o “Creonte” do dia manda pagar sem Selic alguma. Uma fera! Ambos.

Vez por outra me aparecem para defender contribuintes com desclassificação do Simples e cobrança integral do novo imposto, arbitrado. Quem disse que o auditor teve o cuidado de considerar os valores recolhidos como Simples?! Em suma, a mesma conta cobrada duas vezes, em violenta afronta ao art. 142 do CTN. No máximo, o que se consegue é mandar abater do total embrutecido, torto, os valores recolhidos, mas em magreza plena, isto é, de um lado, o fisco atochando-lhe a Selic mais multa de 75%; do outro, nada. Viva Creonte!

Nos tributos escriturais, é quase regra geral, fundada num direito não escrito, que o lançamento não leve em consideração os créditos da empresa. Também no Imposto e Renda: a empresa faz antecipações, nada tem a pagar no final do período antecipado, mas quem disse que poderá compensar com outros débitos? Quem disse que poderá ressarcir? Selic? Nem falar! O pior é que ninguém presta a atenção nessa Reserva de Antígona: a simetria do justo, o preceito de Hilel, que assim respondeu ao discípulo que lhe pedira para explicar a Torá enquanto fosse capaz de permanecer explicando, em pé, num único pé: Faze ao outro que queres para ti. Todo o resto da Torá é apenas é apenas explicação, nota de pé de página. 

Nota de pé de página? Sim. A citação ao Creonte obriga-me a um “pé de página”, com a sua licença, meu caro leitor, aqui está: Era uma vez um rei muito terrível, Creonte, de Tebas. Pois bem, o tal Creonte tinha dois sobrinhos que brigaram entre si até a morte, um contra Creonte, para depô-lo; o outro, a favor, para mantê-lo. O que morreu a favor, Creonte mandou glorificá-lo em estupendo funeral. O que brigou e morreu contra, Creonte baixou um édito: Apodreça aos cães e aves de carniça. E quem sepultar o seu corpo ou cultuar a sua memória, morrerá.

A irmã dos guerreiros mortos, Antígona, também sobrinha de Creonte e noiva do filho dele, viu que a lei era injusta, torta, uma afronta aos conceitos que alguns chamam de direito natural. Prefiro chamá-los de valores civilizatórios, tais como honrar pai e mãe, coisas que se situam antes do Direito e para além do Direito. Ela, muito audaciosa, gritou com o rei: Sim, Creonte, porque não foi Júpiter que promulgou esta tua lei de não enterrar os mortos; e a Justiça, a deusa que habita as divindades subterrâneas jamais estabeleceu tal decreto entre os homens; nem eu creio que o teu édito tenha força o bastante para conferir a um mortal o poder de infringir as leis divinas, que nunca foram escritas, mas são irrevogáveis; não existem a partir de ontem ou de hoje; são eternas, sim! e ninguém sabe desde quando vigoram.

Ditas estas palavras, pode-se dizer que literalmente “deu bode”, tragos, em grego, bode, a tragédia em estado puro, para Creonte também. (Vale a pena conferir, Antígona, de Sófocles; há boas traduções na www, em download gratuito.)

Antes de concluir: um doce gelado a quem apontar um único caso em que o Fisco – federal, estadual ou municipal — aceite receber o que é seu sem os juros Selic. (Como é que conseguem defender a asssimetria?). Penso que o Congresso Nacional devia instalar, urgente, além da Comissão de Constituição e Justiça, a Comissão de Simetria. Enquanto a isonomia cuida da igualdade entre os súditos, a simetria cuida da igualdade entre o Príncipe e o cidadão. Está acima da isonomia. É muito mais. É verdade! Apesar dos muitos Creontes, continuamos a cultuar os mortos.

 

                       

Email do advogado Francisco José soares Feitosa

feitosa@feitosa.adv.br

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 
Leandro Paulsen

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